contratempo contra o tempo

4.1.14

               A tarde caía. Aquele céu, uma mistura hesitante do mesmo tom rosado, morria lentamente para permitir o nascimento da noite amena de um azul quase negro. As luzes da cidade se acendiam uma por uma e todas de uma vez, em uma dança aleatoriamente ordenada. Mas o que mais o fascinava era o dançar das luzes peroladas que fazia a lua ao bater no vidro da sua janela.
        Crescera observando os primas multicoloridos que se formavam na sua janela; crescera deixando horas se esgotarem em si mesmas antes de dormir, olhando as luzes e sonhando com a imensidão infinita do universo. Pensava se um dia deixaria sua janela para trás e se aventuraria vasculhando esse mundo. Pensava se deixaria sua mãe e o perfume de torta de maçã para trás; se deixaria seu pai e as suas histórias inacreditáveis; seu cachorro, sua vizinhança; aquela menina da escola que lhe dera um cartão no dia dos namorados. Seus sonhos flutuavam longe e seus pés enraizavam no chão. Suas pernas eram pequenas demais para os passos largos que almejava dar; se sentia uma mísera folha voando sem caminho em uma floresta de árvores grandiosas e rios caudalosos.

A imensidão o fascinava ao mesmo tempo que amedrontava cada uma de suas células.

     Os anos passaram mais rápido do que poderia esperar. Numa manhã de outono sentiu-se repentinamente tomado pelo receio de ter seu fascínio sido substituído pelos seus temores. Parecia sentado naquela cadeira há décadas. Sentia sua barba começando a crescer e sua pele enrugar. Sua visão falhava, e sua memória lhe pregava peças. Olhou em sua volta e não viu sua mãe ou seu pai na sala de jantar, nem seus amigos correndo pela rua. Aquela menina da escola tinha agora um marido e dois filhos na escola, a mesma escola que estudara anos atrás. A quantos anos? não se lembrava, não sabia. Sentia que vinte anos lhe haviam sido roubados e que a três minutos atrás estava deitado em sua cama olhando para a janela, perdido em confabulações sobre a incerteza e a vastidão do mundo.
          Correra para o quarto e no outro instante já era noite. O prisma multicolorido que sua janela formava na parede ao lado de sua cama não aparecia mais: o vidro da janela estava quebrado a anos. A poeira do quarto o fez espirrar, enquanto ele reparava que seus velhos brinquedos não mais estavam na sua estante colorida. O papel de parede desbotado indicava que a casa fora abandonada a mais anos do que poderia supor. Sentiu-se roubado. Sua própria vida lhe fora tomada a força, e ele não tivera tempo de se defender, de tomá-la de volta com sangue nas unhas se preciso.
        Os próximos segundos ficariam suspensos na eternidade de suas lembranças, pois perceberia que ninguém além dele mesmo o havia roubado. O tempo, o seu tempo, a vida que lhe pertencia havia escorrido pelas suas mãos, como a água de um rio. Escorrera por completo em toda uma única gota. Bastou o tempo de um suspiro para que todo o colorido se transformasse em cinzento e sua pele macia enrugasse em um caminho sem volta.
         Era mentira. O tempo nunca lhe pertencera. Era justamente o contrário. A janela, irreversivelmente quebrada, lhe fora tomada, assim como a sua juventude, pelo ingrato e incessante tique-taque do relógio.